Pó enamorado: E as Montanhas Ecoaram, Khaled Hosseini

Khaled Hosseini retratou o amor filial   e o Afeganistão  e arrasou as tabelas. Outono de 1952, Afeganistão. Na aldeia isolada de Shadbagh, ...

sexta-feira, fevereiro 17, 2017

JAMES WOOD | A MECÂNICA DA FICÇÃO

© David Levenson

Com o crítico literário James Wood entramos com facilidade no texto literário. O difícil, depois, é sairmos de lá.


«Escrever crítica está para escrever ficção e poesia como navegar à vista está para a navegação em alto mar.» Foi John Updike quem o disse na primeira linha de um dos seus melhores conjuntos de textos sobre literatura, Hugging the Shore (sem edição por cá). A frase serviria como excelente comentário ao ensaio A Mecânica da Ficção, não fosse o autor, James Wood (n.1965), crítico literário e romancista inglês, escancarar uma cultivada embirração por Updike (chama-lhe «estilista sumptuoso» mas, na sua boca, isso é ofensa). Wood fez fama primeiro em Inglaterra nas páginas do Guardian e, depois, durante doze anos, nas do New Republic, nos EUA. Em 2007, entrou para a equipa da New Yorker, sendo hoje um dos mais influentes críticos literários. Como se pode então atirar a pequena traineira do comentário e da análise às altas ondas da ficção? No caso de Wood, tanto pelo elogio como pelo exame agudo, usando metáforas ou hipérboles, mas sendo sempre meticuloso na leitura e análise dos textos e pródigo nas citações e na erudição literária. Em 2008, lançou o ensaio A Mecânica da Ficção, agora editado pela Quetzal com tradução de Rogério Casanova. 
O título em inglês (How Fiction Works) e o da tradução portuguesa indicam que o livro pretende ser uma cartilha de acesso de «qualquer tipo de leitor leigo» à mecânica do romance e do conto. Wood quer «fazer as perguntas de um crítico e oferecer as respostas de um escritor». É estimável a intenção, bem como a inegável e contagiosa paixão do autor pela literatura (e a ideia de que tem de ser ela mesma a ensinar-nos a lê-la melhor). Não deixa, contudo, de ser também inegável a paixão do autor pelas suas próprias qualidades de crítico. Explica que «o que Barthes quer dizer é que […]». Logo no início do ensaio, cita Joyce quando este rejeita o «genuíno fedor escolástico», devendo presumir-se que ele mesmo, o impoluto Wood, se considera inocente de qualquer discussão escolástica nas actividades inerentes à sua função de professor de Prática de Crítica Literária na Universidade de Harvard. A sua aproximação ao texto busca dar «respostas práticas» e é nessa linha que A Mecânica da Ficção «conduz um debate sustentado contra» os formalistas Viktor Chklovsky e Roland Barthes. Wood assegura-nos que não precisa de mais do que recorrer aos «livros ao alcance da mão, no [seu] escritório» para nos oferecer este «pequeno livro». É o bastante para, capítulo a capítulo, dar a sua contribuição para o esclarecimento da mecânica da narração, do detalhe, das personagens, da linguagem, da gestão de temporalidades ou do diálogo, «uma breve história da consciência», reflexões sobre «complexidade e compaixão» e, last but no least, uma tese sobre «verdade, convenção, realismo». Tudo em 123 curtas secções de texto e pouco mais de 200 páginas. É obra. Nos EUA, muitos escritores e candidatos a escritores apontam já A Mecânica da Ficção como uma influência importante no seu trabalho. Missão cumprida. Mas estará mesmo?
De facto, toda a investigação de Wood serve exaustivamente para defender a tese central de que «a ficção é simultaneamente artifício e verosimilhança, e que não há qualquer dificuldade em suportar estas duas possibilidades». Ele quer explicar a «técnica desse artifício» e «voltar a ligá-la ao mundo». A tal tese sobre verdade, convenção e realismo é apenas a defesa de um certo realismo. O programa estético de James Wood é, afinal, naturalista e anti-vanguardista, com uma previsível colagem ao crítico inglês novecentista John Ruskin (a dificuldade que estes ingleses têm em, apesar de tudo, escapar à influência...). Wood confia na conjugação do poder mimético da ficção (sobretudo pela voz própria e interior das personagens) com a intuição criativa do autor. Ambas seriam formas de ligação verosímil e intimidade fiável do texto literário com o mundo real. Condição essencial para que isso acontecesse: rejeitar a omnisciência ou omnipresença do autor, expressas em intencionais exibições de estilo («esteticismo») ou na auto-complacente afirmação de um cunho autoral. Chave-de-ouro ou pedra filosofal: o autor mergulharia no interior da personagem através do uso do «discurso indirecto livre»; faria a narração numa terceira pessoa próxima, ponte e fusão de autor e personagem, aproximando-o de uma realidade que não lhe é desconhecida, mas que lhe é externa. Resultado: «Não temos a certeza absoluta sobre quem é 'dono' da palavra.» Em vez de «cravar as suas bandarilhas no mapa mental» da personagem, o autor deveria deixar-nos habitar nessa cartografia. No limite, diz-nos o crítico (na sua omnisciência, maior do que a do escritor), «a função do romancista é transformar-se, imitar aquilo que descreve, mesmo quando a matéria-prima é empobrecida, vulgar, entediante» (embora, por exemplo, a «decomposição da linguagem na América» seja «uma ameaça mimética para o escritor», sobretudo se ele se chamar Pynchon, DeLillo ou Foster Wallace, ou seja, figuras a abater pelo ambicioso Wood).
Está bem explícito nestas páginas o combate contra aquilo que, em 2001, numa crítica ao romance de estreia de Zadie Smith (Dentes Brancos), Wood cunhou como «realismo histérico»: o estilo megalómano, verborreico, caótico e dispersivo do autor sobrepondo-se à atenção ao enredo e ao desenvolvimento das personagens, logo, às «verdades humanas essenciais» que a ficção pode capturar e revelar. O crítico rejeita também a linha do «realismo comercial» (como em Le Carré ou P. D. James), marca ficcional mais lucrativa e monopolizadora do mercado. O romance, insiste, «é o grande virtuoso do excepcionalismo: consegue sempre livrar-se das regras com que o tentam manietar. E a personagem romancesa é o Houdini desse excepcionalismo.» Aos autores, caber-lhes-ia então colocarem-se ao seu serviço, libertos de qualquer contexto social, histórico, psicológico, ideológico ou sociológico em que se insiram (o que daria depois imenso jeito aos críticos que só teriam de concentrar-se, também virgens, no texto). Até Wood dar um pontapé final no traseiro daqueles que apontam o realismo como mera convenção morta, A Mecânica da Ficção aplica-se na sua reabilitação enquanto «impulso central na ficção» para a «fidelidade às coisas como elas são». E prescreve receitas para se chegar lá.
As impressões digitais de um grande escritor na grande ficção são, «paradoxalmente, identificáveis mas invisíveis». Para o justificar, Wood esgravata passagens de obras dos autores que mais estima, da Bíblia e Shakespeare a Henry James, Virginia Woolf, Jane Austen, Ford Madox Ford, José Saramago, Saul Bellow ou Ian McEwan. É um prazer assistir à sua invejável dissecação dos tais «livros ao alcance da mão». O crítico mostra-se entusiasta («Que tremendo exemplo de escrita é este!»), mas nunca condescendente («É útil ver bons escritores a cometerem erros»). Eleito Flaubert («ao mesmo tempo um realista e um estilista») como mestre da narração moderna, Wood discorre sobre o olho do autor e o olho da personagem, ambos em exercício de captação do detalhe. «O artifício reside na selecção do detalhe», afirma. E é também a exploração de detalhes que palpitam o que salva a leitura de A Mecânica da Ficção. A análise pormenorizada e a citação (esplendorosas nos capítulos dedicados às personagens e à linguagem) permitem-lhe mostrar a diversidade de registos, o carácter palpável e visual, a musicalidade, a eficácia da prosa. Mas é pena que Wood use esse dom para sustentar um plano de argumentação teórica. Porquê? Apenas e tão só porque qualquer argumentação teórica é saudavelmente contestável e, por essência, externa à ficção analisada. No limite, segundo a sua própria lógica, para deixar respirar a realidade e grandiosidade do texto literário, o crítico literário devia abter-se de teorizar sobre ela, limitando-se a sinalizá-la, descrevê-la e interpretá-la.
Ao defender que um romance fracassa «quando não consegue que o leitor se adapte às suas convenções [e às suas 'limitações expansivas'], quando não consegue engendrar uma ânsia específica pelas suas próprias personagens, pelo seu próprio nível de realidade», Wood advoga que o encontro do crítico e do leitor com o texto e o autor é um encontro de subtilezas («subtileza de análise, de investigação, de atenção, de pressão sentida»). Uma espécie de aperto de mãos misterioso e sensível. Depois, conclui: «A realidade ficcional é de facto construída a partir de 'efeitos', mas o realismo pode ser um efeito e simultaneamente ser verdadeiro». Afinal, os «grandes realistas, de Austen a Alice Munro, são também grandes formalistas.» E, dado que o romance, simultaneamente «natural e artificial», é uma convenção da vida — não mera verosimilhança ou veracidade, mas «a coisa mais próxima da vida» —, a palavra realismo deve ser substituída por lifeness: «a vida na página, a vida reanimada pela arte mais elevada».
Se tivesse havido na literatura, como houve (e ainda há) na pintura, uma luta entre arte abstracta e figurativa, é fácil percebermos onde estaria James Wood. Não exactamente no século XIX, mas talvez perto dos «novos figurativos». Wood defende, assim, uma teoria conservadora, bastante agressiva para a liberdade, afirmação e inovação estilística autoral e muito permissiva quanto à recepção impressiva por parte do crítico. É uma teoria respeitável e bem defendida. É apenas de lamentar que Wood também queira convencer os leitores de que ele escreve sobre a literatura tal como ela é. Propondo-se desfrutar e desmontar a arte da ficção como ela seria em si mesma, o crítico quer afinal ligá-la à vida como ela é. E a vida, tal como ela é, não existe por si só nos livros; as suas manifestações pluriformes pertencem à afirmação criativa, inalienável e intransmissível, de cada autor. Talvez seja isto o que, precisamente, acabará sempre por escapar a olhos realistas e a egos irrealistas, como o do crítico e ensaísta James Wood. Diz Laura Miller, no Salon.com: «Ele é sempre interessante, mas poucas vezes convincente. Ninguém o supera a dar a entender que a literatura é uma questão moral, mas o problema é que não nos faz querer ler os livros de que gosta.»



LER Setembro 2015
© Filipa Melo (interdita reprodução integral sem autorização prévia)